Dia 25
Janeiro 25, 2021
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Janeiro 25, 2021
Janeiro 24, 2021
Atendeu o telemóvel enquanto tentava pôr as luvas para se servir de um croissant. Mala entalada debaixo de um braço, telemóvel preso entre o ombro e o ouvido. Vi-a a parar e a pedir desculpa, com sotaque, porque se tinha esquecido completamente dele. Retomou o processo de colocar as luvas descartáveis, de plástico, parecidas às que existem nas bombas de gasolina, enquanto lhe pedia para não sair de onde estava, que em dez minutos estava lá. Vi nos olhos dela que os dez minutos que referiu eram só um número, como podiam ser cinco ou quinze, um número que não ia cumprir. Continuou as compras com calma, enquanto eu o imaginava sentado a uma mesa de café, bebida terminada há muito, mexendo no telemóvel até ficar quase sem bateria. Na minha cabeça não estava sozinho, estava ali sentado lado a lado com a angústia do esquecimento a que fora votado.
Janeiro 23, 2021
Começara a chover há instantes. Pingas rápidas e leves escureciam diligentemente as ruas, e chamaram-me à janela. Vi-o logo, os meus olhos sempre atraídos pelo estranho. Também as pessoas na rua, amontoadas debaixo do toldo amarelo do café e da pala do quiosque, não conseguiam deixar de o olhar. Ninguém é imune ao ridículo, e ainda assim o ridículo não existe. Aprendi-o provavelmente com a liberdade de Mia Wallace a dançar descalça e com uma camisa de homem, um ridículo que se transformava em poder. Também ele dançava ali, à chuva, de olhos fechados e headphones. O rosto virado para cima, rodopiando com as mãos dentro dos bolsos a abrirem o casaco à chuva. Sorria e dançava. A felicidade parece-nos sempre ridícula. Não me recordo se estava molhado, talvez a chuva se encolha de medo quando lhe abrirmos o peito. Ou, por outras palavras: um homem é tão forte quanto menos se levar a sério.
Janeiro 22, 2021
Janeiro 21, 2021
Ninguém sabe quando ou de onde apareceu, mas todos já o vimos pela rua. Dorme debaixo dos carros e é comum vê-lo à noite, ao sair do carro depois de estacionar, a olhar-nos imóvel. No escuro, é só olhos, enormes e amarelados. Se o tentarem afugentar, perceberão que não tem medo de ninguém; se o tentarem chamar, também não responde. Gosto de o imaginar como um espírito anárquico e rebelde, alguém que não se deixa domar. Tem o pêlo demasiado cuidado para um gato vadio, mas não tem identificação. Passeia pelo bairro às escondidas, disfarçado entre os arbustos e a roda dos carros, camaleão em corpo de mamífero. Ninguém o vê bem, ninguém sabe quem é, mas todos o respeitam. Lembra-me Rodriguez a vaguear pelas ruas de Detroit, aparecendo ninguém sabe de onde, vivendo ninguém sabe do quê, mas mantendo intacto o seu orgulho e misticismo. Naturalmente, só lhe falta a guitarra às costas.
Janeiro 20, 2021
Janeiro 19, 2021
Duas crianças colocam, com receio, os pés na água salgada. Estão de mãos dadas na água que sobra da rebentação. As duas, de fatos de banho claros, têm um cuidado anormal para a idade, instigadas pelo medo das ondas que lhes rebentam dois metros à frente. Ali, estão seguras. A do lado esquerdo é mais alta, e a atenção com que olha a mais pequena diz-me que são irmãs. A água, que dá pelos joelhos da mais pequena, é um espelho, um espelho que vai refletindo para todos os lados, sem critério. Também o cabelo desta, apanhado dos dois lados, em cima das orelhas, brilha. É mais escuro que o da irmã. Não lhes vejo o rosto, mas imagino-a assustada e excitada em doses iguais. A irmã deve estar com um sorriso doce a esconder a preocupação. Não estava lá, não vi aquele momento. Mas estou a vê-lo agora pelos olhos e dedos de Sorolla, e até sinto o cheiro a mar.
Janeiro 18, 2021
Janeiro 17, 2021
A mulher debruçava-se sobre o estendal, colocando molas com uma mão e pegando na peça seguinte com a outra. Era um trabalho bem coreografado e ela nunca falhava o ritmo. Estava a trabalhar contra o relógio do mundo, sabia que a qualquer momento o sol podia enublar-se. Só lhe batia no estendal durante um período limitado de tempo, um sol diagonal que lhe ia valendo para o serviço, e ela aproveitava-o ferozmente. Ficávamos intrigados com a quantidade de roupa que estendia, com o número de vezes que aparecia ali, com o peito apoiado no parapeito e caída sobre o estendal. Nunca lhe vimos as pernas, para nós era um quadro emoldurado pela janela que víamos da sala. Ela sempre ali, a estender roupa que parecia multiplicar-se diariamente, e nós a vê-la do sofá, discutindo a força dos hábitos.
Janeiro 16, 2021
O silêncio é subvalorizado. A primeira coisa que fiz hoje foi abrir a janela para o escutar. Escutar o silêncio dos carros parados, o silêncio das pessoas em casa, o silêncio até dos pássaros que migraram, numa fuga repetida até à exaustão. Escutar o silêncio da cidade, tão raro quanto precioso. O que ouvi, todavia, foi diferente. Dois miúdos gritavam de uma bicicleta para a outra, enquanto ultrapassavam a velhota que tinha ido ao pão. Uma carrinha descarregava compras feitas num hipermercado para entrega em casa. Ouvia-se o som da água a bater na chapa, o porteiro que aproveitava para lavar o carro enquanto lavava a entrada do prédio à pressão. Ouvia-se um cão a rosnar a um galho, no centro da praceta, um galho que depois se deixava apanhar para o cão levar ao dono. Ouvia-se tudo, ouvia-se a cidade toda ali. Tudo menos o silêncio que queria ouvir.
Janeiro 15, 2021
Vimo-la agachada no meio do passeio como se estivesse a apanhar algo do chão, algo que não conseguíamos ver. Tinha ar de turista asiática, denunciada pela correia que lhe prendia a máquina fotográfica ao pescoço e pelos olhos rasgados. Estava absolutamente imóvel, imune a todas as pessoas que a contornavam e ficavam a olhar sem abrandar o passo. Foi só quando estávamos já demasiado perto que o vimos, um pequeno pardal caído. Ela tirava fotos sem parar, só mexendo as mãos e os olhos. Com mais ou menos zoom, na horizontal ou na vertical, ela parecia destinada a fotografar todos os ângulos do pássaro que ali tombara e ficara, hirto como um bom modelo. Continuámos também no nosso trajeto, sem pausas. Fui o resto do caminho a pensar quem estava errado: ela, sem pudor com aquela morte que achava tão interessante; ou nós, do alto da nossa insensibilidade, achando aquela morte tão normal como indigna de nota.
Janeiro 14, 2021
Janeiro 13, 2021
No hotel pegava num copo de café para o caminho. Era grátis e mau, mas permitia ter as mãos quentes. As luvas só não chegavam. O passeio era feito olhando para cima e para baixo, numa alternância que tinha de ser rápida e eficaz. Era uma cidade nova, com prédios enormes, e ele não queria perder isso. Por outro lado, se não olhasse para baixo arriscava-se a escorregar na neve, ou sobretudo na camada de gelo que se formara com o recongelar da neve ligeiramente derretida pelo sol tímido. Era uma ginástica que todos à sua volta pareciam fazer sem problemas, mas que para ele continuava a exigir esforço. Desistira de tirar fotografias para lhe mostrar quando voltasse a estar com ela, porque isso exigia tirar a luva da mão direita. De trezentos em trezentos metros, as pernas obrigavam-no a parar: as calças enrijeciam geladas, e ao andar queimavam-lhe as pernas ao toque. As calças duras e congeladas, as pernas a endurecer e a congelar. Não havia hipóteses, tinha de entrar num qualquer café de esquina até que a sua temperatura regressasse aos mínimos aceitáveis. Enquanto se abastecia de novo café ou chá, pensava no quanto sofrem os pássaros ali, expostos aos elementos.
Janeiro 12, 2021
A minha rua, pela proximidade do hipermercado, torna-se por vezes um cemitério de carrinhos de plástico. Aconteceu agora, com as compras para as festas: as pessoas estacionam as suas viaturas na rua e depois trazem as compras num carrinho pelo passeio. Depositadas as compras no carro, os carrinhos vermelhos são largados em qualquer lado, sem critério nem cuidado. Mas nem tudo são coisas más: as pessoas do bairro começam a apropriar-se dos carrinhos para o seu dia-a-dia. A velhota que coloca o saco do talho no carrinho e o leva até à porta do prédio; os pais que ali sentam os filhos pequenos para lhes proporcionar uma viagem radical pelo trepidar da calçada portuguesa; até os miúdos que se juntam no parque infantil a beber litrosas e fumar, desrespeitando o recolher obrigatório, e se colocam dentro dos carros para chocarem entre si. Esta última não é boa, não, mas carrinhos de choque de hipermercado? Só na minha rua, desconfio.
Janeiro 11, 2021
Os dias de neve eram um acontecimento pelo qual esperava todo o ano. Antigamente não havia ano em que não nevasse. Mal começava a chegar o frio, deitava-me sempre com a expectativa de quando acordasse estar tudo coberto de branco. O ritual era sempre o mesmo. A mãe acordava-nos para tomar o pequeno-almoço. Todos ensonados, mas todos juntos. Nesse momento eu ia espreitar a janela, a maioria das vezes em vão. Mas no dia em que a noite tivesse vestido a cidade de branco, a excitação sobrepunha-se. Pelo nível da neve nos carros estacionados ou pela profundidade dos sulcos dos que passavam na estrada, ficaríamos mais ou menos ansiosos. Em vez do pequeno-almoço, ligávamos o rádio para ouvir o esperado: que a escola não iria abrir por causa da neve. Vestíamos roupa apropriada e íamos na mesma para a escola, mas em vez das aulas, tínhamos sólidas guerras em que as munições eram trocadas por bolas de neve.
Janeiro 10, 2021
A rua onde fica o meu emprego é também local de trabalho (e penso que de dormida) de um arrumador profissional. Fica por ali todos os dias do ano, dia de semana ou não. Duvido até que ele alguma vez saiba que dia é. Fala sozinho, sempre, e por vezes grita gatafunhos ilegíveis que a mente lhe apresenta. Não é invulgar assustar quem lhe deixa uma moeda de cortesia pelo seu trabalho, mas os seus olhos desculpam-se em simultâneo, como se não reconhecesse as próprias cordas vocais. Antes dele, outro senhor fazia daquela rua local de trabalho. Desapareceu como apareceu: de repente, e em força. Era alto e magro, cabelo e barbas grisalhas. Sempre com as mesmas calças demasiado largas, dava para ver já terem pertencido a outra pessoa. Cumprimentava-nos todos os dias com simpatia exacerbada, aos habituais daquela rua, e não nos aceitava moedas. Aceitava cafés e bagaços, isso sim. Nenhum deles alguma vez se queixou para mim, nem se lamentou da sua vida, e eu sempre lhes admirei a estoicidade.
Janeiro 09, 2021
Mal o homem se aproximava, o patrão pedia à empregada para tirar um café e levar àquela mesa. Ele sentava-se na esplanada, verão ou inverno, mas só após passar um lenço de papel na cadeira e na mesa, por esta ordem. Quando tirava o chapéu - e tinha vários, todos impressionantes - e o pousava na cadeira do lado, o café aparecia. O jornal que tinha trazido dobrado na mão, nunca debaixo do braço, era então esticado cuidadosamente, como quem dá início a um ritual. Lia a partir da última página, e saltava as que não lhe interessavam. As que reconhecia terem mérito, relia calmamente, escrevendo comentários na berma. Tomei-o sempre por um antigo editor, porventura já reformado - ainda que não fosse velho. Acabado o jornal, tarefa que lhe levaria entre uma e duas horas, deixava-o ali mesmo, cuidadosamente dobrado, com uma moeda de um euro em cima. O dono do café desconfiava que ele nunca soubera o preço do café.
Janeiro 08, 2021
Janeiro 07, 2021
Ainda é cedo quando chego à padaria. Uma padaria de bairro antiga, fabrico próprio, onde não cabe hoje mais do que uma pessoa no interior. Juntei-me à fila, longa e espaçada, e aguentei o frio. Parecíamos estar a mirrar dentro dos casacos, desabituados do frio. Nem um cachecol, nem um gorro. Os nórdicos rir-se-iam da nossa figura, da nossa falta de preparação para as agruras da meteorologia. Nem é preciso ir tão longe: os nossos avós fariam o mesmo. Quando o homem à minha frente entrou, não colocou a máscara. Imaginei que estivesse sem máscara na fila por estar ao ar livre e a cumprir a distância de segurança, mas a verdade é que se esqueceu e desculpou-se enquanto entrava na padaria. O senhor que o atendia não parecia preocupado com vírus: preocupava-o apenas não pagar a multa a que ficaria sujeito. De acordo sobre quem a suportaria, atendeu-o normalmente. Eu, à porta, ia pensando se valia a pena ficar ou ir embora.
Janeiro 06, 2021